quinta-feira, 4 de junho de 2015

"O HOMEM PARTIDO" (Sannio Carta)





- Eu ouvi coisas horríveis sobre você.
 - É mesmo? – respondi.
 - Sim. Disseram-me que você é um velho obsceno e que não tem nada de extraordinário na sua  pessoa, que apenas o ordinário, caberia em alguma descrição sobre você. – testemunhou aquela pequena.
- Eu também já ouvi falar muitas coisas sobre mim. A maior parte delas, eram só um amontoado  de merda ignorante e terços de realidade. – fiz uma pequena pausa, enquanto tateava nos lençóis em busca do meu isqueiro amarelo - E então, você vai ficar?
- Vou!

Acordo com o cantar dos pássaros e leva de dois a três minutos até que eu ouça o motor do primeiro carro a cruzar a rua. O interior tem dessas coisas, suplícios de silêncios humanos. Em certos locais você poderia simplesmente afrouxar o cinto da barriga e gritar como um louco e levariam horas até que aparecesse o primeiro intrometido a questionar da sua loucura.
Arrasto a mão sobre a cara como se fosse passar  pasta de manteiga de amendoim sobre um pão de forma. Sinto a barba rala e me glorifico da minha própria masculinidade animal.
Observo a pequena dormindo com a sua boca ligeiramente aberta. E penso se o meu pau caberia naquela pequena entrada (ontem a noite coube). Coço o saco, espreguiço-me, solto um grunhido involuntário e o braço esquerdo da pequena ao meu lado se apropria do meu peito.
Eu poderia passar a vida inteira aqui. Neste momento. Nesta manhã. Neste quarto esverdeado. A musa e eu.
 E não teríamos de comer, nem mijar, nem defecar. Também não teríamos compromissos. E um breve movimento de nossos corpos, levaria dias para acontecer. Um beijo, semanas. Uma trepada, meses. Uma gravidez, anos.
Sorri do tempo que não se mexia e imitava o mesmo, com uma quase inércia, numa particular dormência. Inserido voluntariamente em uma espécie de relatividade empática. Agradando o meu lado otimista e desolando o meu espectro melancólico. Dividido entre a vontade de ir e o medo de ficar.
Nisso, a pequena acorda.
- O - Oi! – Gagueja espremendo o delicado rosto contra a fronha do travesseiro.
- Bom dia! – eu respondo.
Ela apenas sorri, e eu quis que aquele sorriso de jovem moça, se confundisse com o meu sorriso  de homem de meia idade.
- Que horas são? – pergunta a pequena.
- Nem sei! – respondi.
- Você não usa relógio? – parecendo surpresa, com o fato.
- Há anos!...
- E como faz pra não se atrasar pro trabalho?
- Pergunto.
- Pergunta às horas para os estranhos?! Porque não toma vergonha na sua cara e compra logo um relógio pra você?
- Não tenho tempo.
- Hahaha... Você é uma figura!
- Meu anjo da guarda deve pensar o mesmo. – divaguei.
- Anjos não existem, seu bobo!
- E porque não?
- Você já viu algum? – perguntou à pequena.
- Não.
- Nem eu. E se eu não vi. Não existe!
- E como você sabe que você existe? – perguntei erguendo uma das sobrancelhas.
- Espelhos... Espelhos sempre me lembram que eu existo. - parecendo já ter se enchido daquele papo.
Depois daquelas infantilidades todas, eu quis me aproximar, mas a pequena simplesmente levantou-se e caminhou até o banheiro.
Tudo deve ter durado uns dez segundos, no máximo. Entre o impulso da jovem em pular da cama e dar sete ou oito passos até chegar ao banheiro. E eu não conseguir desviar o meu olhar nem por um segundo, de sua  minúscula calcinha branca.


- Porque você não vem aqui? – disse eu, sentado a beira da cama.
- Não posso, eu tenho aula daqui a pouco.
- Como você sabe que está perto da hora da sua aula? Nem relógio a gente tem.
- Pela sombra do abacateiro.
- Que abacateiro?- murmurei, enquanto baforava uma bituca. 
- Aquele ali! – E pela janela, recém aberta, apontou para um quintal arenoso, donde dava pra ver uma única árvore. Um abacateiro com a sombra mais ao Oeste, mais a esquerda de si mesmo.
- Tenho uma prova às onze.- disse isso e aproximou-se da porta.
- Não abra! Por favor, não abra! – implorei.
- Porque isso agora? – perguntou com uma nítida expressão de contrariedade.
- E se simplesmente ficássemos aqui?- questionei sem responder, sem igualmente saber explicar.
- Então não haveria amanhã! – respondeu de pronto.
A porta se fechou ao passar da musa. Joguei as minhas costas contra o colchão da cama e concebi um sorriso que pareceu com o dela.

                                                              FIM